Cesario Alves
A Arte Fotográfica em Vila do Conde

 

Entre muitas caixas, contendo negativos de vidro, película flexível e fotografias impressas em papel, que constituem o legado da Fotografia Adriano, encontra-se uma que se evidencia por ser demasiado recente. Uma caixa de papel fotográfico que só pode ser uma criação dos anos 90 do séc. XX. Não tem a simplicidade e requinte gráfico das caixas de papeis e negativos de vidro dos anos 90 do séc. XIX, altura em que ainda não era viável a reprodução de fotografias em jornais (muito menos em embalagens de material fotográfico), a não ser pela arte e mãos hábeis de um gravador. A variedade do desenho gráfico das embalagens de filme e papel fotográfico, ao longo dos tempos é muito rica, no entanto a caixa que se descreve aqui não tem muito interesse, o que ela guarda no interior é que vale a pena descrever.
Dentro da caixa encontra-se uma carta enviada a Carlos Adriano pelo fotógrafo canadiano Laurent Héroux. Acompanham a carta, algumas fotografias que Laurent fez do estúdio e laboratório de Carlos Adriano, em Julho de 1991 (A carta é de Dezembro de 1991).

Laurent escreve que lhe deu um grande prazer a visita, proporcionada por Cristina Carvalho, que tinha sido fotografada na infância por Carlos Adriano. Relata que entrou no estúdio como se de um templo se tratasse e que viveu uma página da história da fotografia, pois nunca tinha visto um artista-fotógrafo que utilizasse placas de vidro e preparasse os seus próprios químicos. Nunca tinha estado num estúdio desprovido de iluminação de flash, que só utilizava luz natural, controlada por cortinas.

 

 

 
Carta enviada por Laurent Héroux a Carlos Adriano em 1991
 

 

 

O texto de Laurent é muito gentil, tal como Carlos foi quando o recebeu, no entanto, as fotografias que enviou a acompanhar a carta, deixam perceber uma compreensível dificuldade de adaptação ao tempo que vivia, este artista-fotógrafo, aos 85 anos. Talvez fosse mesmo uma persistência intencional, a de preservar esta forma de encarar a fotografia, consciente da sua importância histórica e pedagógica. Afinal, apesar de manter o seu estúdio com luz natural com janelas viradas a norte, como deve ser, Carlos já tinha fotografado com flash e com filme de formatos pequenos e era justo que achasse que não havia muito mais para experimentar.
 
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No início dos anos 90 do séc. XX a fotografia digital estava apenas a gatinhar. Se hoje na fotografia comercial, não é concebível fotografar com outra tecnologia, é justamente porque o computador está no centro das nossas vidas aceleradas, mas no tempo e no espaço imaginado da criação artística, todas as tecnologias estão disponíveis e se podem cruzar. No séc. XXI, se quisermos, é possível fazer daguerreótipos, fotografar com negativos de colódio húmido e imprimir em papel de sal de prata albuminado (processos fotográficos do Séc. XIX) , tal como se pode fazer captura fotográfica remota a partir do computador e com software, combinar camadas de várias imagens para obter uma só, que resulte de múltiplos momentos, variações de luz ou planos de foco, impossíveis de capturar num só disparo.
 
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Nos 50 anos que se seguiram ao aparecimento do Daguerreótipo (primeiro processo fotográfico viável anunciado publicamente, em França, 1839), as técnicas de registo fotográfico tornaram-se mais rápidas, simplificaram-se e industrializaram-se. Nas últimas décadas do séc. XIX muitos pintores comerciais se converteram aos novos processos de produção de imagens, por curiosidade ou por uma questão de sobrevivência, porque a fotografia se apropriou do encargo de fazer os retratos, sendo a sua forma mais popular as “cartes de visite” (pequenos retratos colados em cartão para transportar no bolso). Os pintores trouxeram para a fotografia o seu conhecimento da luz, perspetiva e composição. A fotografia, entendida como técnica ou como arte, era nesses tempos uma tecnologia inovadora, excitante para quem a praticava, mágica ou fantasmagórica para os que não a conheciam. A fotografia continua a ser, passados mais de 170 anos, uma tecnologia em transformação e renovação, excitante para a industria e para os possuidores de câmaras fotográficas, que hoje em dia, somos todos nós. Uma arte misteriosa para os filósofos e infinitamente criativa para os historiadores e artistas.

 

 

 

Carlos Adriano, anos 20, séc. XX *

 

 

 

 

O estúdio de Carlos Adriano, na Rua da Misericórdia, fotografado em 1991 por Laurent Héroux

 

 

Carlos Adriano (1906-2000), filho do pintor e fotógrafo Joaquim Adriano, viveu a sua juventude numa época em que os processos fotográficos já estavam suficientemente desenvolvidos para sustentar uma atividade comercial. Joaquim Adriano (pai de Carlos) e João Adriano (seu tio) iniciaram a atividade fotográfica em Vila do Conde, na última década do século XIX. Depois do falecimento de Joaquim Adriano, em 1926, Carlos manteve o estabelecimento, onde viriam a trabalhar também o seu irmão Pedro e, mais tarde, o seu sobrinho Eduardo.

A casa Adriano da Rua da Misericórdia, manteve-se aberta até 1993, com o seu estúdio iluminado com luz natural e a sua tela pintada à mão, que serviu de fundo a centenas de retratos.

Nos retratos mais antigos verifica-se uma curiosa abundância de fundos pintados. Estas telas, provavelmente executadas por Joaquim Adriano, estabelecem uma continuidade fantasiosa com a pintura, permitindo a recriação de cenas improváveis, trazendo para o espaço do estúdio, a cenografia e o estímulo à imaginação, próprios do teatro.

 

 

 

 

Carlos Adriano fotografado por Joaquim Adriano (entre 1910 e 1912) *

 

 

 

* Os retratos de Carlos Adriano, aqui publicados, foram sujeitos a reenquadramentos que eliminaram degradações periféricas do negativo. Esta opção, questionável do ponto de vista museológico, é no entanto intencional. O reenquadramento é um método de trabalho frequente no espólio destes autores (mas também em toda a fotografia profissional). Existem marcas em muitos negativos que comprovam que por vezes o fotógrafo isolava e imprimia partes da imagem (frequentemente rostos, em retratos coletivos). Estes negativos grandes, com enorme definição permitiam isso, mantendo uma qualidade aceitável.

Nos reenquadramentos que aqui se ensaiam, mantém-se a integridade da composição e do olhar do fotógrafo, retirando da fotografia, apenas elementos periféricos distrativos.

 

Cesário Alves

Agosto 2012

 

 

 

 

 

Este ensaio foi publicado como um capítulo do catálogo da exposição permanente “Vila do Conde: Tempo e Território”, instalada no Centro de Memória de Vila do Conde.